Santo Tomás de Aquino e o Problema do Mal



Texto extraído da Suma Teológica - Tomo I - Questão 49: "Da causa do mal".

Em seguida se trata da causa do mal. E, sobre este assunto, três artigos se discutem:

Art. 1 – Se o bem pode ser causa do mal.
Art. 2 – Se o sumo bem, Deus, é causa do mal.
Art. 3 – Se há um mal sumo, causa de todo mal.


Art. 1 – Se o bem pode ser causa do mal.
(Ia IIae, q. 75, a. 1; II Sent., dist. I, q. 1. a. 1, ad 2; dist. XXXIV; a. 3; II Cont. Gent., cap. XLI; III, cap. X, XIII; De Pot., q. 3, a. 6, ad 1 sqq.; De Malo, q. 1, a. 3; De Div. Nom., cap. IV, lect. XXII).

O primeiro discute-se assim. – Parece que o bem não pode ser causa do mal.

1. – Pois, a Escritura diz (Mt 7, 18): Não pode a árvore boa dar maus frutos.

2. Demais. – De dois contrários um não pode ser a causa do outro. Ora, o mal é o con­trário do bem. Logo, o bem não pode ser causa do mal.

3. Demais. – O efeito deficiente não pro­cede senão da causa deficiente. Ora, o mal, se tiver causa, é um efeito deficiente. Logo, tem uma causa deficiente. Mas, como tudo o que é deficiente é mau, só o mal pode ser a causa do mal.

4. Demais. – Dionísio diz que o mal não tem causa1. Logo, o bem não é a causa do mal.

Mas, em contrário, dia Agostinho: De nada mais pode nascer o mal, a não ser do bem2.

SOLUÇÃO. – É forçoso admitir-se que todo mal tenha, de certo modo, causa. Pois, o mal é a falta do bem natural ao ser e que este deve ter. Mas a deficiência de um ser, em relação à sua natural e devida disposição, só pode provir de alguma causa que o arrasta contrariamente à sua disposição; assim, um grave não pode mover-se para cima senão por uma causa que o impele; e a ação do agente só é deficiente, por algum impedimento. Ora, só o bem pode ser causa, porque nada é causa senão enquanto ser, e todo ser, como tal, é bom.

E se considerarmos a natureza especial das causas veremos que o agente, a forma e o fim importam certa perfeição e se prendem à natureza do bem; e também a matéria, como potência para o bem, tem a natureza deste. E assim, do que já se disse antes3, é claro que o bem é causa do mal, por meio da causa material; pois, se demonstrou que o bem é o sujeito do mal. Quanto à causa formal, o mal não a tem, pois ele é, antes, a privação da forma. E, semelhantemente, nem causa final, sendo, pelo contrário, o mal a privação da ordenação ao fim devido; pois, não só o fim tem a natureza de bem, mas também o útil, que se ordena ao fim. Porém, o mal tem causa ao modo do agente, não certo por si, mas por acidente.

Para cuja evidência deve saber-se que de um modo é causado o mal na ação e de outro no efeito. Na ação, o mal é causado por defeito de algum dos princípios dela, a saber, do agente principal ou do instrumental; assim, o defeito no movimento do animal pode provir da debi­lidade da força motora, como nas crianças, ou só na inaptidão do instrumento, como nos côxos. Porém, num efeito qualquer, o mal é causado ora pela virtude do agente, sem que o seja no efeito mesmo dele; ora por defeito do agente ou da matéria. Assim; é causado pela virtude do agente, quando, da forma visada pelo agente resulta necessariamente a privação de outra forma; p. ex., da existência da forma ígnea resulta a privação da forma do ar ou da água. Donde, quanto mais o fogo for perfeito em vir­tude, tanto mais perfeitamente imprimirá a sua forma e assim, também, tanto mais perfeita­mente corromperá o seu contrário. Por onde, o mal e a corrupção do ar e da água resultam da perfeição do fogo. Mas isso por acidente, pois o fogo não visa privar a forma da água, senão imprimir a forma própria; mas, fazendo tal, causa a dita privação, por acidente. Porém, se houver defeito no efeito próprio do fogo, p. ex., que este seja deficiente no aquecer, tal se terá dado ou por defeito da ação, o que redunda no defeito de algum princípio, como ficou dito; ou por indisposição da matéria que não recebe a ação do fogo agente. Mas o fato mesmo da deficiência atinge o bem, ao qual é próprio, por si, agir. Por onde, é verdade que o mal de nenhum modo tem causa, a não ser por acidente. Assim, o bem é a causa do mal.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como diz Agostinho, O Senhor chama árvore má à má vontade e árvore boa à boa vontade. Mas a vontade boa não produz nenhum ato moral­mente mau, pois é pela própria vontade boa que o ato moral é julgado bom. Porém, o ato mesmo da vontade má é causado pela criatura racional, que é boa. E assim é a causa do mal.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O bem não causa o mal que lhe é contrário, mas outro; assim, a bondade do fogo causa o mal da água; o homem, bom por natureza, causa o ato moral mau. E isto mesmo por acidente, como se disse. Con­tudo, acontece que também, de dois contrários, um causa o outro por acidente; assim, o frio reinante no exterior aquece, fazendo o calor retrair-se para o interior.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O mal tem causa deficiente, de um modo nas coisas voluntárias, e de outro nas naturais. Pois, o agente natural produz o seu efeito tal como este é, salvo se for impelido por alguma causa extrínseca; e isto mesmo é um defeito do agente. Por onde, nunca aparece o mal no efeito, sem que preexista algum outro mal no agente ou na matéria, como já se disse. Nos atos voluntários, porém, o defeito da ação procede da vontade deficiente no ato porque não se submete, neste, à sua regra. Cujo defeito porém não é culpa, se bem dele resulta esta, porque a vontade obra com tal defeito.

RESPOSTA À QUARTA. – O mal não tem causa por si mesmo, mas só por acidente, como já se disse.

1. De div. nom., c. IV (lect. XXII).
2. Contra Iulianum (lib. I, cap. IX).
3. Q. 48, a. 3.

Art. 2 – Se o sumo bem, Deus, é causa do mal.
(Supra, q. 48, a. 6; II Sent., disto XXXII, q. 2, a. 1; dist. XXXIV, a. 3; dist. XXXVII, q. 3, a. 1; II Cont; Gent.., cap. XLI; III, cap. LXXI; De Malo, q. 1, a. 5; Compend. Theol., cap. CXLI; ln Ioan., cap. IX, lect. ad Rom., cap. I, lect. VII).

O segundo discute-se assim. – Parece que o sumo bem, Deus, é causa do mal.

1. – Pois, diz a Escritura (Is 45, 6-7): Eu Sou o Se­nhor, e não há outro. Eu o que formo a luz e crio as trevas, o que faço a paz e crio o mal; e outra passagem (Am 3, 6): Se acontecerá algum mal na cidade, que o senhor não fizesse?

2. Demais. – O efeito da causa segunda reduz-se à causa primeira. Ora, o bem é a causa do mal, como já se disse1. Sendo portanto Deus a causa de todo bem, como mais acima se de­monstrou2, segue-se também que todo o mal vem de Deus.

3. Demais. – Como diz Aristóteles, a causa da salvação de uma nau é idêntica à do perigo3. Ora, Deus é a causa da salvação de todas as coisas. Logo também é a causa de toda perdi­ção e de todo mal.

Mas, em contrário, diz Agostinho que Deus não é o autor do mal, porque não é causa da tendência para o não-ser4.

SOLUÇÃO. – Como resulta do que já foi dito5, o mal consistente na deficiência da ação é sempre causado pela deficiência do agente. Em Deus porém não há nenhuma deficiência, pois Ele é a suma perfeição, como já antes se demonstrou6. Por onde, o mal consistente na deficiência da ação, ou causado por deficiência do agente, não se reduz a Deus como a sua causa. – Porém, o mal consistente na corrupção de certas coisas reduz-se a Deus como à sua causa. E isto é claro tanto nas coisas naturais como na ordem do voluntário. Pois, já se disse7 que um agente produtor, pela sua virtude, de uma forma, da qual resulte corrupção e deficiência, causa, pela mesma virtude a corrupção e a deficiência. Ora, é manifesto que a forma principalmente visada por Deus nas coisas criadas é o bem da ordem do universo. Esta, porém, requer, como antes foi dito8, existam certos seres susceptíveis da deficiência, que por vezes realmente têm. E assim Deus, causando, nas coisas, o bem da ordem do universo, por conseqüência e como por acidente causa as corrupções delas, conforme diz a Escritura (1 Rg 2, 6): O Senhor é o que tira a vida e a dá. E no dito da mesma (Sb 1, 13) – Deus não fez a morte– deve-se entender a morte como visada em si mesma. Pois, à ordem do universo per­tence também a da justiça, exigindo que se inflija uma pena aos pecadores. E, neste sen­tido, Deus é o autor do mal que é pena, não porém do que é culpa, pela razão supra exposta.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – As passagens citadas se referem ao mal da pena, não porém ao da culpa.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O efeito da causa segunda deficiente reduz-se à causa prima não deficiente, quanto ao que ele tem de entidade e de perfeição; não porém quanto ao que tem de deficiência. Assim, tudo o que na claudica­ção é movimento é causado pela virtude motora; mas o que nela é obliqüidade não vem da virtude motora mas da curvatura da perna. E seme­lhantemente, tudo o que é realidade e ato na má ação reduz-se a Deus como à sua causa; mas o que nela é deficiência não é causado por Deus, mas pela causa segunda deficiente.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A submersão da nau é atribuída ao nauta, como à causa, porque não fez o necessário para a salvação dela; mas Deus não deixa de fazer o necessário à salvação. Por onde o símile não colhe.


1. Q. 49, a. 1.
2 .Q. 6, a. 1, 4.
3. II Phys. (lect. V).
4. LXXXIII Quaestion. (q. XXI).
5. Q. 49, a. 1.
6. Q. 4, a. 1.
7. Q. 49, a. 1.
8. Q. 48, a. 2.


Art. 3 – Se há um mal sumo, causa de todo mal.
(II Sent., dist. I, q. 1, a. 1, ad 1; dist. XXXIV, a. 1, ad 4; II Cont. Gent., cap. XLI; III, cap. XV; De Pot., q. 3, a. 6; Compend. Theol., cap. CXVII; Opusc. XV, De Angelis, cap. XVI; De Div. Nom., cap. IV, lect. XXII).

O terceiro discute-se assim. – Parece que há um mal sumo, causa de todo mal.

1. – Pois, efeitos contrários têm causas contrárias. Ora, há contrariedade nas coisas, segundo a Escritura (Ecle 33, 15): Contra o mal está o bem, e contra a morte a vida; assim também contra o homem justo o pecador. Logo, há dois princípios contrários, um do bem, outro do mal.

2. Demais. – Se um dos contrários está em a natureza das coisas, também o outro, como diz Aristóteles1. Ora, o sumo bem está em a natureza das coisas, pois ele é a causa de todo bem, como já antes se demonstrou2. Logo, também o mal sumo, que lhe é oposto, é causa de todo o mal.

3. Demais. – Como nas coisas há o bom e o melhor, assim também o mau e o pior. Ora, bem e o melhor se dizem pela relação com o ótimo. Logo, o mau e o pior pela relação com algum sumo mau.

4. Demais. – Tudo o que é por participa­ção se reduz ao que é por essência. Ora, as coisas más para nós não são más por essência, mas por participação. Logo, deve haver algum mal sumo, causa de todo mal.

5. Demais. – Tudo o que é acidental se reduz ao que é essencial. Ora, o bem é causa do mal acidental. Logo, é necessário admitir algum mal sumo, causa essencial dos males. Nem se pode dizer que o mal não tenha causa por si, senão só acidente; porque daí resultaria que o mal não existe na maioria, mas só na minoria dos casos.

6. Demais. – O mal do efeito se reduz ao da causa, porque o efeito deficiente vem de causa deficiente, como já antes se disse3. Ora, não se pode ir até o infinito. Logo, é necessário admitir um primeiro mal, causa de todo mal.

Mas, em contrário, o sumo bem é causa de todo ser, como já antes se demonstrou4. Logo, não pode haver um princípio que lhe seja oposto e causa dos males.

SOLUÇÃO. – Do já dito resulta que não há um primeiro principio do mal, como há um do bem.

Primeiro, porque o primeiro princípio do bem é por essência bom, como antes já foi de­monstrado5. Ora, nada pode ser mau por essên­cia, pois já se demonstrou6 que todo ser, como tal, é bom, e que o mal só pode existir no bem como no seu sujeito.

Segundo, porque o primeiro principio do bem é o sumo e perfeito bem, que pré encerra em si toda bondade, como antes ficou demons­trado7. Porém, não pode haver um mal sumo, pois, segundo já se demonstrou8 embora o mal sempre diminua o bem, todavia não pode nunca consumi-lo totalmente, e, assim, sempre remanescendo o bem, nada pode haver íntegra e perfeitamente mau. Pelo que o Filósofo diz: ­o mal integral se destruirá a si mesmo9,pois, destruído todo o bem, o que é exigido para a integridade do mal, elimina-se também o próprio mal, cujo sujeito é o bem.

Terceiro, porque a essência do mal repugna à noção de princípio. Quer por ser o mal causado pelo bem, como antes já se demonstrou10. Quer por não poder assim ser causa primeira; pois, a causa acidental é posterior à essencial, como está claro em Aristóteles11.

E os que admitiram dois princípios primei­ros, um bom e outro mau, esses caíram em tal erro pelo mesmo fundamento por que profes­saram semelhantes opiniões estranhas aos anti­gos; a saber, por não considerarem a causa universal de todo ser, mas somente as causas particulares de efeitos particulares. E por isso, se verificavam ser nociva a outra uma coisa, em virtude da sua natureza, consideravam a natureza dessa coisa má, como se, por ex., disséssemos ser a natureza do fogo má porque queimou a casa de um pobre. Ora, o juízo sobre a bon­dade de uma coisa não se deve formar pela referência a algo de particular, mas por si mesmo e pela referência a todo o universo, no qual cada coisa tem o seu lugar mui ordenada­mente, como se vê pelo já dito12. E semelhante­mente, os que pensaram que dois efeitos particulares contrários têm duas causas particulares contrárias, não souberam reduzir estas à causa universal comum. E por isso julgaram que até quanto aos primeiros princípios há contrariedade nas causas. Mas, como todos os contrários convêm em algo de comum, necessário é desco­brir-lhes uma causa comum superior às causas contrárias próprias; assim, superior às qualidades contrárias dos elementos encontra-se a virtude do corpo celeste. E semelhantemente, superior a tudo o que de qualquer modo existe, encontra-se um primeiro principio de existir, como antes já se demonstrou13.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os contrários convêm num mesmo gênero e também na razão de existirem. Por onde, em­bora tenham causas particulares contrárias, to­davia é necessário chegar-se a uma causa pri­meira comum.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Da natureza da pri­vação e do modo de ser (hábito) é que se refiram à mesma coisa. Ora, o sujeito da privação é o ser em potência, como já ficou dito. Por onde, sendo o mal a privação do bem, como resulta do já dito (ibid), o mal se opõe ao bem com o qual vai junta a potência; não porém ao sumo bem, que é ato puro.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Cada coisa se con­sidera segundo a sua noção própria. Ora, assim como a forma é uma perfeição, assim a privação é uma remoção. Por onde toda forma, toda perfeição e todo bem se consideram pela aproximação ao termo perfeito; porém a privação e o mal, pelo afastamento do termo. Por isso não se considera o mau e o pior pela aproximação ao mal sumo, como se considera o bom e o ótimo pela aproximação ao sumo bem.

RESPOSTA À QUARTA. – Não se considera mal nenhum ser, por participação, mas por privação da participação. Por onde, não é necessário fazer-se a redução a algo que seja por essência mau.

RESPOSTA À QUINTA. – O mal não pode ter causa senão por acidente, como antes se demonstrou. Donde é impossível fazer-se a redução a algo que seja por si causa do mal. E o dizer-se que o mal existe na maioria dos casos é absolutamente falso. Pois, os seres geráveis e corruptíveis, em que unicamente consiste o mal da natureza, são pequena parte de todo o universo. E demais, em cada espécie, a deficiência da natureza se dá na minoria dos casos. Só nos homens o mal aparece na maioria, porque não o bem, quanto aos sentidos do corpo, é o bem do homem como homem, mas sim o bem racional; ora, são mais numerosos os sequazes dos sentidos que os da razão.

RESPOSTA À SEXTA. – Nas causas do mal não se pode proceder até ao infinito; mas é mister reduzir todos os males a alguma causa boa, da qual resulta o mal por acidente.

1. II De caelo et mundo (lect. IV).
2. Q. 6, a. 2, 4.
3. Q. 49, a. 1, 2.
 4. Q. 6, a. 4.
5. Q. 6, a. 3, 4.
 6.Q. 5, a. 3; q. 48, a. 3.
7. Q. 6, a. 2.
 8. Q. 48, a. 4.
 9.  IV Ethic. (lect. XIII).
10. Q. 49, a. 1.
11. II Physic. (lect. X).
12. Q. 47, a. 2, 3.
13. Q. 2, a. 3; q. 44, a. 1.

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